QUANDO DOI MUITO...

ESTA E A HISTORIA DO TARFAYA

Fez-se noite e está um vento marítimo muito frio. Paramos no posto de abastecimento de combustível ao lado do cabo TARFAYA para abastecer os jeeps.

Aproveita-se a paragem para preparar qualquer coisa para comer em andamento pois ainda faltam muito quilómetros de pista desértica até El Ouatia.

A enfermeira Linda , no seu habitual deambular sempre que há uma paragem, aparece excitadíssima, trazendo no colo um pequeno ser meio enregelado e faminto mas com uns olhinhos brilhantes e suplicantes.

A Maufeitio arrepia-se (do frio ou do adejar do espectro da morte) e berra:
O que e isso??
Ao que a Linda responde: Oh! coitadinho!
E a Maufeitio lá pega um pedaço de miolo de pão mais macio e fá-lo ingerir pelo pequenino ser. A FOME E O INSTINTO DE SOBREVIVENCIA SAO ESPECTACULARES.

É madrugada quando paramos a porta dos nossos amigos em El Ouatia .
A Mina preparou leite do bebe para o nosso novo companheiro, que foi alimentado e acarinhado durante toda a viagem no regaço quente da sua protectora.

Chegou a Portugal, foi adoptado pela família e, como seu elemento mais jovem, foi acarinhado e mimado como mais não poderia ser.
Cresceu, com um Q.I. superior depressa aprendeu tudo o que se lhe ensinou e sozinho descobriu ainda muito mais. Mas não era só inteligente, era meigo, lindo!

Outras viagens se fizeram, o nosso companheiro não nos podia acompanhar, ficava cheio de saudades e deixava-nos ansiosos o tempo todo até ao regresso. Depois da alegria do reencontro vinham as travessuras e a zanga por se ter sentido abandonado. Para quem diz que nem os poetas sabem traduzir as palavras amor e paixão - aqui está a respectiva definição.

Cresceu no seio da sua família adoptiva, nunca apreciou visitantes eventuais, aceitava com restrições os amigos da casa, mostrando-se cordial mas um tanto arredio só prestando atenção a quem mesmo lhe agradava. Mas não era agressivo e era até acessível

E Foi a sua falha e o seu fim



Aflição, buscas por campos, matas e poços, oferta de alvíssaras nos jornais, apelos nas rádios locais. Tudo foi infrutífero.

Três dias depois, com o desespero totalmente instalado, alguém encontra o pequeno corpinho, ainda quente, junto ao muro da casa que o tinha acolhido.


Decapitado, a mão direita amputada, (qual muçulmano ladrão a que e imposta por crença tal punição) nem uma gota de sangue! Foi barbaramente sangrado antes de ser mutilado. O resto do corpo estava totalmente limpo, não tinha sinais de luta ou tentativa de defesa.

Os restos amputados nunca apareceram.

O TARFAYA FOI BARBARAMENTE ASSASSINADO POR UM COBARDE QUE SE DIZIA POLICIAL E QUE TEVE MEDO DE ENFRENTAR UMA MULHER


Com os Deuses não se brinca. Como ateia que sou quero acreditar que o TARFAYA será a mascote de estimação de Allah ou do Profeta e irá assistir à sua vingança.

Este o meu desejo forte... tão forte que vai acontecer, porque é justo e eu quero.


Tempo e tempo passado, nas noites em que uiva o vento norte, sinto junto a mim o calor do seu corpinho------------------------------------------- --------------------------------------------- e o tempo parece parar---------------------------------------------- ---------------------------------- na expectativa de voltar a ouvir um som semelhante ao grasnar das gaivotas (e eis que surge a LINDA com uma coisinha parda na mão com uns olhinhos pretos vivos e umas orelhitas espetadas tal qual um morcego. Oh Nôr um gatinho!!!!---------------------------


TARFAYA «O FUNDAMENTALISTA ISLAMICO »
ABRIL 1997 - NOVEMBRO 2003




ACONTECEU EM OUARZAZATE


Um qualquer grupo de voluntários cumpre mais uma missão humanitária nas areias cálidas do Sahara marroquino.

Um desafio não acessível a todos e cumprido sempre com esforço, muita alegria e todo o amor do mundo. Tem contrariedades, às vezes frustrações mas atingido o objectivo nada há de mais compensador e gratificante.

Só por si, a viagem de milhares de quilómetros em viaturas 4x4, no asfalto, na água, em pistas de calhau ou de areia, já é uma grande aventura cheia de acontecimentos e pontos altos de grande adrenalina. Mas há também as surpresas, os imprevistos e a necessidade de ir sempre mais além do que inicialmente se previu realizar.

Assim acontece em todas as missões; o olhar atento dos voluntários capta facilmente todos os sinais de anomalias, necessidades imediatas de alguém numa condição especial de sofrimento --- e esse olhar é suficiente para que, de imediato, fiquem esquecidos compromissos, horários, comodidades.

Um pequeno grupo progride no território marroquino com destino ao grande Sahara. Foram estabelecidas etapas de forma a conciliar «umas férias diferentes ajudando quem mais precisa».

Atinge-se as portas do deserto: a cidade de OUARZAZATE, confluência das antigas rotas comerciais, amalgama de culturas e credos e, talvez o maior centro de «trocas comerciais» da Africa do norte. Há que ter sempre tempo para confraternizar com estas gentes hospitaleiras, trocar bens para eles de primeira necessidade, por mais um cadeau, uma recordação… aquele punhal berbere para um amigo querido, a lâmpada de Aladino que nos vai fazer sonhar com génios e tesouros…

Todo o grupo se dirige para o grande «souk» absorvendo odores e cores, excitado com o misticismo do local e a alegre recepção dos vendilhões. Uma primeira aventura: atravessar a larga avenida fervilhante de viaturas de todos os tipos a uma velocidade inacreditável.

Mas

Está a passar-se qualquer coisa de anormal; há mais buzinas que as muitas já habituais, um desacelerar do trânsito e uma confusão quase ordeira diferente da também habitual.

No meio do pavimento das duas faixas descendentes algo se passa

Uma voluntária do grupo, alheada de toda a confusão, presta assistência a uma jovem nativa deitada no asfalto. A sua presença cria como que uma muralha, deixam de se ouvir buzinas, o trânsito rola lentamente como que em respeito.

A voluntária continua ajoelhada no chão junto à jovem, com ela comunicando e, estranhamente, fazendo-se entender. Consegue fazê-la soerguer-se, oferece-lhe um rebuçado, afaga-lhe o rosto inexpressivo. Aos poucos a jovem vai saindo da apatia, sorri para a voluntária.

De mãos agarradas as duas levantam-se do chão --- o trânsito, agora parado, deixa-as atingir em segurança os degraus da berma. E aí se sentam as duas, tranquilas, sorridentes, comunicando sem falarem uma mesma linguagem mas, de olhos nos olhos, como irmãs estreitamente unidas por um sentimento de partilha e de amor.

Largos minutos passaram, aproxima-se uma familiar da jovem --- da jovem deficiente --- que tem ataques --- que por vezes não sabe quem é --- que por vezes não sabe o que faz --------- como usa dizer-se nestas paragens --- .

--- a nossa voluntária estava no local certo na hora exacta para, antes de todos nós, ouvir aquele grito silencioso de socorro e a ele responder, sem medo, sem limitações, com todo o amor que os voluntários têm para dar.

Comentários

Karen disse…
Olá, sou jornalista brasileira,tenho 24 anos e sempre tive vontade de participar de uma missão humanitária. Como faço para me inscrever como voluntária em uma delas. Quaisquer dicas são válidas.

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